Nós, integrantes do Coletivo Autônomo
de Mulheres Pretas - ADELINAS, vimos
a público denunciar o genocídio antinegro que vitimiza cada vez mais mulheres
negras neste contexto de pandemia do novo coronavírus. Da mesma forma repudiamos
os ataques do atual Presidente da república Jair Bolsonaro contra grupos
vulneráveis, sobretudo negros e indígenas em suas declarações públicas sobre a
pandemia, que, apesar de não articular raça, classe e gênero, geo-localiza a
população historicamente discriminada e alijada dos seus direitos de cidadania
plena, como a população matável e aprofunda ainda mais as desigualdades sociais
e o fosso abismal entre negros e brancos na sociedade.
Desde o início
da pandemia (Março/20) o presidente se mostrou declaradamente contrário às
recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) e relativizou a pandemia
como uma “gripezinha”, “histeria”, e ao ser confrontado sobre o exponencial crescimento das mortes ele
debochou das diversas famílias que perderam seus entes queridos, dizendo:
“Sou Messias, não sou coveiro...E, daí”?.
Apesar da dificuldade de
mensurar o alcance da pandemia no Brasil, atualmente o país perfaz o total de mais de 100 mil pessoas
mortas e pelo menos mais de 3 milhões de infectados. Estudo da Unifesp e USP
revela que em São Paulo, por exemplo, negros são 2,5% mais infectados por
coronavírus que brancos. Isso se estende pelo pais, dada a ampliação do quadro
de vulnerabilidades sociais em que negros e indígenas estão submetidos
historicamente.
Dados do IBGE
(2019) revelam que o recorte por raça/cor indica que é significativamente maior
a participação da população negra em ocupações informais (47,3%) quando
comparada com os trabalhadores brancos (34,6%). Estes mesmos dados apontam
que a população negra representa parcela significativa de comunidades
tradicionais, quilombolas, ribeirinhas, de pescadores artesanais, dos que vivem
em situação de rua, das pessoas privadas de liberdade, das que vivem na extrema
pobreza e em domicílios que não respondem aos padrões de habitabilidade, que
não contam com abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário como nas
favelas, daqueles que apresentam menores rendimentos ou sobrevivem da informalidade;
dos que dependem do lixo de natureza reciclável; das empregadas domésticas; das
cuidadoras de idosos, dos idosos negros, dos que estão em situação de
insegurança alimentar; que têm dificuldades de acesso à serviços e equipamentos
de saúde, assistência social e educação.
Somos vítimas históricas da
pandemia do racismo estrutural, como já denunciado pelo MNU, Abdias do
Nascimento e Lélia Gonzalez. O recrudescimento da barbárie, capitaneada pelas
políticas de segurança pública, aponta que as dinâmicas de punição no Brasil,
com foco na privação da liberdade de mais de 812 mil pessoas, aliada ao déficit
de vagas que, atualmente, chega ao número de 312.125 nas unidades carcerárias e
aprofunda ainda mais a crise generalizada no sistema prisional com o
crescimento exponencial de mortes e a disseminação da pandemia de COVID-19. O foco
na privação da liberdade já expõe a população prisional como grupo de risco:
superlotação que torna propicio as péssimas condições sanitárias, a proliferação
de doenças como tuberculose, pneumonia e HIV tudo isso é terreno propício à
propagação e disseminação do coronavírus. Por exemplo, hoje uma pessoa presa
tem 34 vezes mais chances de contrair tuberculose do que alguém fora das
grades.
No
meio de todas as inseguranças provocadas por esse contexto de pandemia, temos de
um lado, a crueldade do presidente com suas declarações públicas contrária ao
isolamento social, e, de outro, o manejo do braço armado do Estado-policial, causando ainda mais terror contra a população alvo
de violências sistêmicas. Agora, além de ser exposta ao vírus letal pelo chefe
maior da nação, ela também morre pelas mãos da polícia. A violência
policial não apenas aumentou na pandemia, mas ganhou novas proporcionalidades
de terror nas abordagens
ilegais, ameaças, uso desnecessário da força, invasões de domicílio,
tortura, execuções extrajudiciais e desfazimento da cena do crime entre tantas
outras violações de direitos humanos. Solidarizamos
com as mães que choram as mortes de seus entes familiares, vítimas da pandemia
do racismo: a mãe do jovem Rogério, de João Paulo, João
Victor, Guilherme e tantas Mães de Maio, de Osasco e Barueri, Mães em luto da
zona leste, Mães de Manguinho, Mães da Baixada Fluminense/RJ, Mães contra as
opressões das prisões, eufemisticamente chamadas de “Socioeducativo”; com as mulheres
negras e indígenas desterradas, expulsas
dos seus territórios, desde a América Latina a Palestina; com as mulheres vítimas
do lesbocídio, do transcídio e dos assassinatos por forças paraestatais na
chamada “guerra” contra as drogas que já causou uma crise humanitária no país.
Nós, ADELINAS, dos diversos territórios do país, falamos em diferentes
vozes, em alto e bom som que somos as principais vítimas de doenças endêmicas e
do sucateamento do sistema de saúde pública, da violência obstétrica, da
cultura do estupro, das mortes prematuras por doenças curáveis e preveníveis e da
violência doméstica. Assim, denunciamos a necropolítica perpetrada contra nós, nos
quatro cantos do país. Desde as experiências de Sônia, com 60 anos, diarista e
residente no bairro de Cosme de Farias, em Salvador/BA, que é obrigada a
trabalhar mesmo com os sintomas da COVID-19, às afinidades de opressões nas
experiências de Glória e Terezinha, ambas, moradoras de Brasilândia/SP, a dona
Angélica e Maria, moradoras de Planaltina, em Brasília. Estas mulheres negras,
em diferentes territórios criminalizados, vivenciam estas experiências, aparentemente pessoais, mas
com sinistras afinidades em seus corpos-coletivos, numa simbiose mortal entre
pobreza, raça, classe e gênero, sob vários eixos de subordinação e
vulnerabilidade. A expansão da pandemia no mundo
e, especialmente no Brasil, redimensiona a sofisticação destas múltiplas opressões.
Por isso, denunciamos o genocídio antinegro que é histórico e que está
explicitamente demonstrável com a pandemia do novo coronavírus na sociedade.
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